Nossa vida é dominada pelo digital. Não importa aonde vamos ou o que pensamos em fazer, as chances de haver um ponto de contato que envolva tecnologia é grande. E, por mais que a maioria das pessoas não aceite isso, estes dispositivos e ambientes digitais influenciam o nosso comportamento.
Muitas empresas de software, inclusive, já foram acusadas de utilizar neurociência e behaviorismo para influenciar o comportamento das pessoas em seu benefício próprio, induzindo-as a fazerem coisas que não queriam. Basta uma rápida pesquisa no Google e você encontrará algumas delas.
Mas estas histórias não são a regra quando falamos em criar um app, por exemplo. Muitas das ferramentas digitais que existem nos dias de hoje buscam facilitar a nossa vida e, para isso, de forma intencional ou não, se utilizam de heurísticas, vieses e, até mesmo, da neurociência para esta criação. Entretanto, é possível usar destes artifícios com intenção e ética, para mudar as nossas vidas para melhor.
Heurísticas e Vieses
A heurísticas são a ferramenta comportamental mais conhecida no meio do design de produtos digitais. Se tornaram hype depois que Norman e Nielsen divulgaram suas 10 heurísticas para o design de interface1. Ainda hoje, esse costuma ser o primeiro contato para designers que querem aprender sobre elas.
Entretanto, o estudo do entendimento sobre como heurísticas e vieses funcionam é muito mais antigo. Em 1974, Daniel Kahneman e Amos Tversky publicaram o artigo “Julgamento sob incerteza: heurística e vieses2”, que apresentou a forma como utilizamos nosso cérebro para tomar decisões do dia a dia.
De forma breve, nossa mente funciona em duas formas: o Sistema 1, rápido, automático, instintivo e dirigido por emoções; e o Sistema 2, lento, analítico, lógico e que faz contas para tomar decisões. Obviamente, a maioria das pessoas acha que utiliza o Sistema 2 para tomar a maior parte das decisões em sua vida, mas isso não é verdade.
O Sistema 2 utiliza muito mais energia de nosso corpo do que o Sistema 1. Então, depois que aprendemos uma tarefa, automatizamos sua operação no Sistema 1. Pense na primeira vez que você dirigiu um carro na rua: ajustou o banco com cuidado, ajustou cada espelho, colocou o cinto e achava difícil ter que olhar para frente e para 3 espelhos ao mesmo tempo. Hoje, você dirige sem notar que faz cada uma dessas atividades.
Esses atalhos que nosso cérebro busca para economizar energia, que é a regra da natureza, são chamados de heurísticas e vieses. Se por um lado eles são bons por nos fazerem economizar tempo e energia, por outro podem nos colocar em problemas. Existem situações em que estes atalhos nos levam a tomar decisões erradas.
Nossa mente funciona em duas formas: o Sistema 1, rápido, automático, instintivo e dirigido por emoções; e o Sistema 2, lento, analítico, lógico e que faz contas para tomar decisões.
Mudando comportamentos ruins
Desde que Skinner revolucionou a psicologia com sua abordagem behaviorista, passamos a entender como o comportamento humano é influenciado por uma série de fatores3. Estes avanços evoluíram até a criação da psicologia cognitivo-comportamental, que une interpretação e ações para mudar comportamentos.
A popularização dos smartphones e os comportamentos repetitivos e viciantes, que liberam muita dopamina antes e depressões após o uso, criou uma série de novos problemas ligados ao nosso comportamento. Nos tornamos mais compulsivos do que nunca?
Alguns produtos tentam colaborar com a resolução destes novos problemas. Aplicativos que ajudam a monitorar o sono, parar de fumar, comer melhor e fazer exercícios, estão entre os mais famosos que tentam mudar comportamentos ruins para que os usuários possam ter uma vida mais saudável.
Isso é vantajoso para as pessoas! Aqui na Hive temos um exemplo com o app da KikosFit. O app fitness mais baixado do Brasil ajuda as pessoas a mudarem de um comportamento sedentário e mentalmente exausto, para uma perspectiva melhor, por meio de exercícios e meditação. Seguimos incrementando o produto para que ele possa ter um impacto cada vez maior.
Isso nos deixa bem. Quando uma pessoa tem um problema declarado e deseja mudar, construímos apps para ajudá-las a dar esse salto em suas vidas. É uma razão nobre e ética para se falar em mudar comportamentos.
O que se vê por aí, na prática, são muito mais produtos que reforçam o vício e a compulsão do que aqueles que querem ajudar as pessoas a terem uma vida livre e melhor. Jogos com muitos estímulos visuais e sonoros, aplicações com repetição de movimento viciante e recompensas rápidas que mexem com nossa base hormonal.
Estamos viciados. E de quem é a culpa? Imagino que seja um ciclo, já que as pessoas querem cada vez mais entretenimento, as empresas entregam, viciamos nos estímulos e buscamos a próxima opção, em um ciclo, aparentemente, sem fim. Quebrar essa corrente tem se tornado cada vez mais difícil, então, repito a pergunta: de quem é a culpa?
Algumas empresas estão literalmente manipulando os usuários para ampliar seus resultados. O impacto social é enorme e difícil de mudar.
Questões éticas
Muitas empresas trabalham com heurísticas sem entender o real impacto de suas ações. Quando Aza Raskin criou o scroll infinito, seu objetivo era o de manter os usuários mais tempo na plataforma, pensando em métricas de negócio, evitando o churn. O que se viu na prática foi uma legião de viciados, rolando telas, interagindo com conteúdos pobres e vendo o tempo evaporar na sua frente. Isso levou o próprio Aza a pedir desculpas pela sua invenção4.
Isso levanta questões éticas para o desenvolvimento de apps. Algumas empresas estão literalmente manipulando os usuários para ampliar seus resultados. O impacto social é enorme e difícil de mudar. No mundo real, os impactos já são percebidos: a atual geração, nativa digital, é a primeira em 100 anos que apresenta queda de QI em relação a seus pais5.
Então devemos abandonar o behaviorismo quando estamos criando produtos? Não é o caso. Muitas pessoas querem mudar seus comportamentos, e essa é uma diferença fundamental entre o uso, ou não, de técnicas comportamentais.
A pessoa quer parar de fumar? Podemos ajudá-la a eliminar as pistas que a atraem e remover os gatilhos que levam o cigarro para sua boca. O problema é fazer mais exercícios? Conseguimos engajar as pessoas, recompensá-las e criar aprovação social e torná-las mais motivadas. A diferença é que a pessoa quer mudar um comportamento de forma consciente, diferente de colocar em suas mãos uma aplicação com scroll infinito que nos torne em dependentes de dopamina.
Conclusão
Respondendo à pergunta que está no título, sua decisão deve se basear em ética. Ao responder uma simples pergunta, você sabe se deveria usar técnicas behavioristas para criar apps: meu usuário quer mudar seu comportamento? Se a resposta for sim, você pode trabalhar para que ele atinja seus objetivos. Caso contrário, você manipulará as pessoas apenas para ter lucro.
Até mesmo o uso irresponsável, sem tanto conhecimento, de heurísticas populares no meio do design pode prejudicar seus usuários e a sociedade como um todo. Pensar com empatia também é pensar nas consequências daquilo que estamos construindo e entregando para os nossos usuários.
A neurociência, a psicologia cognitivo-comportamental e o behaviorismo são conhecimentos que podem melhorar a nossa sociedade como um todo. Entretanto, o egoísmo de alguns e a busca pelo lucro a qualquer preço tem criado produtos sem responsabilidade, deixando nossa sociedade doente.
Seja ético. Nunca engane os seus usuários e atue para mudar apenas os comportamentos que ele está disposto a mudar.
Referências
- https://www.nngroup.com/articles/ten-usability-heuristics/
- http://links.jstor.org/sici?sici=0036-8075%2819740927%293%3A185%3A4157%3C1124%3AJUUHAB%3E2.0.CO%3B2-M
- https://discoversocialsciences.com/wp-content/uploads/2019/09/Skinner-selection-by-consequences.pdf
- https://www.thetimes.co.uk/article/i-m-so-sorry-says-inventor-of-endless-online-scrolling-9lrv59mdk
- https://www.dailymail.co.uk/health/article-11841169/IQ-scores-dropped-time-nearly-100-years.html#:~:text=IQ%20scores%20in%20the%20US%20have%20dropped%20for%20the%20first,years%2C%20new%20research%20has%20indicated.&text=The%20researchers%20set%20out%20to,but%20they%20found%20the%20opposite.